REVISTA PARATUDO

“Cuidem das minhas obras lá” – Reflexões sobre a doação de Paulo Mendes

por | set 28, 2020 | Paratudo | 1 Comentário

No início do mês, repercutiu no cenário internacional a decisão do arquiteto brasileiro e Pritzker 2006, Paulo Mendes da Rocha. Decisão esta que envolve toda sua história e trajetória Profissional. Paulo Mendes decide doar para uma instituição portuguesa o seu acervo com cerca de 8.800 itens, relacionados a mais de 320 projetos do arquiteto. Não sabemos se tal decisão foi em virtude de uma insatisfação do arquiteto com a realidade nacional no que se refere aos problemas enfrentados do cuidado e preservação de obras e de memórias. Mas este fato nos leva a questionar sobre isso e a relação do corpo com o espaço.
Me recordo que em 2016, ano do meu Trabalho de Conclusão de Curso, fomos a São Paulo. Estávamos o arquiteto Bráulio Vinícius Ferreira, eu e uma turma de amigos do curso de arquitetura. Em um de nossos roteiros estabelecidos para “mergulhar” em São Paulo, tivemos a oportunidade de visitar o MuBE (Museu Brasileiro de Escultura), projeto de Paulo Mendes. Como de praxe, a imersão do corpo no espaço promove um impacto muito maior do que já havíamos experimentado ao estudar o projeto deste museu nos ateliês de projeto. Evidente sensibilidade que é marca promovida pelo tempo, pela experiência e pela bagagem cultural.
Mas algo muito significativo para mim, sem dúvidas aconteceu no dia em que fizemos um circuito que contava com a visita ao Copan, Escola da Cidade e o Edifício do IAB, edifício no qual encontra-se a sede do escritório de Paulo Mendes da Rocha. Na ocasião ficamos admirados pelo cuidado do arquiteto, com a simplicidade e esmero de sempre em seus projetos. Após circularmos pelas dependências do IAB, nos deparamos com o escritório do arquiteto Rafic Farah e ali tivemos pouco mais de 1 hora de experiência compartilhada sobre arquitetura, projetos, apropriação espacial, materiais experimentados desde a maquete, técnica e tecnologia – gratidão.
“Cuidem das minhas obras lá” foi o que Paulo Mendes disse ao nos identificarmos como alunos de Goiânia, assim que descemos e o encontramos na calçada. Um amigo disse que queria conhecer o escritório do arquiteto e saber mais dos projetos. Paulo Mendes da Rocha disse com simplicidade que não havia muito o que mostrar. Os projetos estão aí para conhecermos. Inclusive em Goiânia, tínhamos exemplares das obras dele e exemplos de como não proceder com as mesmas. Esse compartilhamento marcou nosso dia e os meses seguintes. De autoria do arquiteto, temos em Goiânia a Rodoviária de Goiânia, o Estádio Serra Dourada e o Jóquei Clube. Este último totalmente descaracterizado e com terreno completamente fracionado, foi fechado e entregue ao abandono que posteriormente inviabilizou completamente sua reativação. Hoje o clube encontra-se afundado em dívidas e envolto em polêmicas entre tentativas de reabrir, de demolir ou vender imóvel. Nessa ocasião me lembrei uma vez mais do que Paulo Mendes da Rocha nos disse lá em 2016.
De fato, quando um edifício encontra-se “ultrapassado” ao tempo ou inviável sua integridade, logo abrirão espaço para novos edifícios e nos restam apenas as memórias afetivas e memórias históricas do mesmo. A questão é que vemos edifícios significativos perdendo a significância muito rapidamente. O Jóquei Clube de Goiânia é de 1962, mas podemos encontrar edifícios mais jovens que só restam no papel e em fotografias. Falamos aqui de história, relevância, memória e identidade, o que coloque em cheque a seguinte questão: qual é a nossa relação com o espaço, com o tempo e com a memória? Como lidamos com essa construção de identidade? Até aqui tratamos apenas de edifícios de arquitetura.
Num contexto mais amplo, podemos citar um exemplo emblemático recente: o incêndio no Museu Nacional ocorrido em 2018. Na ocasião os peritos identificaram que a falha foi humana em decorrência da negligência com a manutenção de fiações e infraestrutura – fato que já havia sido apontado. Pode não ter relação alguma com a decisão de Paulo Mendes, mas esse contrassenso e descuido com a memória, com a história, nos faz pensar sobre o quanto ainda estamos atrasados no que diz respeito a posturas responsáveis na manutenção, construção e propagação da memória, da história. É necessário organizar a casa. Só assim poderemos ver preservados nossa história e nossas memórias dentro do “nosso quintal”.
Sua decisão recebeu apoio por parte de alguns e desapontamento por parte de outros. Arquitetos, arquitetas e artistas por toda parte do mundo assinaram uma carta-manifesto em apoio a Paulo Mendes da Rocha, Intitulada “Um abraço no Paulo”. A carta encerra com uma citação escrita por Flávio Motta há quase 50 anos a Paulo Mendes. Com a mesma citação, lanço reticências à reflexão. Que possamos disso tudo, tirar lições e reavaliar muito da nossa relação com a nossa história, com a memória. Isso é identidade.

“Paulo Mendes da Rocha se atira contra esse imobilismo [do homem diante das coisas] com ganas de artista, brasileiro, arquiteto que é. Ele ainda nos permite estas investidas na medida em que interessam ao homem. Não só permite, mas instiga, inclusive além fronteiras, menos por Geografia, mais por História, à procura de um tempo que não foi perdido, mas tirado.” – Flavio Motta, em Textos Informes, 1973

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Editor: Altillierme Carlo

Fotografia: Casa Vogue

EDITO RIAL

A Revista Paralax é também fruto da construção criativa e responsiva do Paralelo Amarelo: plataforma que comunica arte, cultura, arquitetura, urbanismo, design e fotografia, com uma ênfase em nossa produção regional.

ISSN 1018-4783

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1 Comentário

  1. Unknown

    Muito bom!! Que a história e memória sejam preservadas!

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